Luanne era como a chamavam, ninguém se interessou por seu verdadeiro nome, até ela o esqueceu. Há um velho ditado francês que diz: ‘Poulet qui a un nom ne va pas à vau-l’eau’. Não, certamente não existe ditado francês algum. Ela também não era, fantasiava ser, sentia-se verdadeiramente assim: estrangeira, distante, diferente deste mundo de estranhos. Não saberia mais discernir se houve escolha, sabia apenas que assim foi, esperando que não o seja, para sempre.
Em cada rosto desconhecido, na dor da entrega, fingindo prazer, fingindo suportar, contrariando Pessoa, fingia não ser dor, a dor que deveras sentia. Durante os suspiros que flutuavam no ar, fechava lentamente seus olhos e imagiva por um momento, ser capaz de se perder nas brumas do tempo. Se imaginava sentada sob a sombra de uma árvore, de uma tarde ensolarada, de brisa refrescante, admirando a leveza do dirigível que deslocando-se no ar, deslocava também o seu olhar.
De alguma forma desabitual, sua dor lhe conectava aos seus melhores devaneios, levando-a à uma dissonância sentimental. Questionava-se sobre a possibilidade de seus pensamentos desaparecerem junto ao seu sofrimento, que então serviam de portal. Que outra realidade devastadoramente imposta poderia lhe conectar à este mundo tão incrivelmente sedutor que habitava sua mente?
Apesar da sua capacidade de divagação aperfeiçoada pelo tempo, nem sempre conseguia abstrair-se da realidade, ainda não havia aprendido o gatilho que disparava sua quimera. Não havia coelho branco, nem chave sobre a mesa. Apesar de desconhecer o que lhe induzia entrar, sabia exatamente o que lhe despertava de suas fantasias: os suspiros cessavam e cada nota que lhe comprara seu pérfido prazer, matavam seu amor e lhe deixavam hematomas na alma. Em sua primeira vez, Luanne já pensava que encontraria o amor. Foi assim na segunda vez, na terceira e na quarta. Parou de contar, passaram-se dias, meses e anos, não passou a ideia que enfim seria o último, cessando aquela realidade com um olhar apaixonado e um convite para nunca mais voltar. Na tentativa de estar pronta, quando a chance parecia bater à porta, entregava-se sem pudor algum, para qualquer um.
Caminhando pela rua, às voltas com seu colorido cachecol, contrastando à monocromia do frio, agora por fora apenas. Sentava-se em um banco qualquer no Cafe de Flore, como em todas as tardes, entre frases de Foucault e imagens de Truffaut, enquanto o velho rádio lhe trazia Piaf: ‘Chanson d’amour’, sua predileta. Eram naquelas tardes bucólicas que esperava seu novo amor.
Acordou no entanto, recobrou-se de consciência, lamentou a realidade. Ao contar as notas que pousara à mesa de cabeceira, escrito em uma delas, em pequenas letras, assim ela o leu:
Eu lhe encontrei. Quem? Tu, eternidade.
És mar misturado ao sol.
Minh’alma imortal, cumpre a tua jura.
Serei sol estival e tu, noite pura.
Pois tu me liberas das humanas quimeras, dos anseios vãos!
Tu voas então, comigo?…
Ela o esperou e ele nunca mais voltou. Na realidade ela jamais saberia afirmar, não lembrara nada daquela noite, nem ao menos sua fisionomia. Das poucas lembranças que enganavam-na, reconstruiu um rosto de retalhos de tantos outros do passado. Escolheu a cor do cabelo, dos olhos, da pele, escolheu a boca, a voz, a barba. Ele nunca mais se manifestou diante da apatia de Luanne que nunca lhe retribuiu sua tentativa de dizer que a amou. Ela nunca percebeu seu olhar, seu carinho ou um beijo que lhe roubou. Estava sempre distante, desconectada.
Ele insistiu sem perguntar ao lhe encontrar diversas vezes, aguardando que ela o reconhecesse, esperando um gesto para sentir-se diferente, não queria lhe ser mais um estranho. Por fim, desistiu e nunca mais voltou. Ele jamais saberia, mas daquela noite em diante, ela nunca mais esteve sozinha em seus devaneios. Enfim ela o encontrou, sentado na mesa ao lado, lendo poesias de Rimbaud, ela levantou, ele a convidou para sentar, ela aceitou, ele lhe disse: ‘- você demorou..’, ela sorriu.
Inspirado na canção Chanson d’Amour de Renato Godá
Escrito por J.R. Wills
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