O Xamã

Xamã é um termo de origem tungúsica, uma língua falada por povos da Sibéria, Manchúria e Mongólia. Estes povos, também pertencentes a famílias mongóis e turcomanas, usavam este termo para designar o que na tradução literal quer dizer: ‘Aquele que enxerga no escuro’.

Ouvi ainda criança, uma parábola que contava a história de um índio, que foi levado por um amigo para o centro de uma cidade grande, ali, caminhando entre os prédios altos e o barulho dos carros, sirenes, buzinas e pessoas conversando, disse ao amigo que estava ouvindo um grilo. Ele duvidou e em meio a todo aquele barulho, o índio o conduziu até uma planta, onde lá estava de fato o tal grilo. O amigo achou que o índio tinha uma ótima audição, porém, ele preferiu explicar de outra maneira, pediu algumas moedas e as jogou ao chão, quando imediatamente, todos ao redor pararam para ver de onde vinha o barulho. Ele então explicou, que cada um ouve aquilo que de fato lhe interessa.

Essa parábola, nada mais é que o Xamã.  Eu posso ser capaz de enxergar naquilo que é escuridão para você, assim como você pode enxergar aquilo que é escuridão para mim. Geralmente temos a sensação que algo se torna mais ou menos evidente com o tempo, porém, em geral, a vida possui um processo de mudança significativamente lento para ser percebido por nossa existência ainda fugaz. O que de fato acontece é alteração da percepção, da importância que passamos a dar a determinadas experiências e/ou expectativas.

Vou tentar um exemplo mais simples. Você compra um carro. Em geral, escolhe um que aparentemente incomum, afinal quer ser original e diferente do restante das pessoas. Porém, do dia para a noite, vários carros ‘iguais’ invadem a cidade. Em todo canto você vê um carro da mesma marca, modelo e cor. O que aconteceu? Absolutamente nada. No entanto, a partir do momento que aquele elemento passou a fazer parte da sua vida de forma particular, passou a receber sua atenção e consequentemente você começou a perceber os outros carros iguais ao seu.

E se invertermos esta constatação e imaginarmos tudo aquilo que teoricamente nos passa despercebido, tudo que nos passa oculto e se quer, fazemos ideia de sua existência. Quantas coisas reais, materiais, passam despercebidas em frente aos nossos desatentos e dispersos olhares? Vamos agora elevar isso a outro nível:

Quantas coisas teoricamente passam despercebidas diante de nosso pensamento desatento e disperso?
O que exatamente nosso cérebro é capaz de armazenar, sem nos darmos conta de sua existência? Esses pensamentos nasceram ou foram apenas acessados em alguma base de dados anteriormente inconsciente? Será que toda nossa aparente realidade é apenas a inversão contínua de pensamentos conscientes e inconscientes?

Durante muito tempo, as drogas foram usadas com esta finalidade: abrir as portas da percepção. Existe no entanto quem defenda que podemos alcançar a mesma compreensão de outra forma. Através da meditação, do estudo, da religiosidade. Eu escolhi a fotografia como agente revelador (sem trocadilhos). Acredito que a fotografia é sim, uma ferramenta interessante para o exercício da percepção. A possibilidade de pausar um momento e analisá-lo detalhadamente. Registrar o milésimo de um segundo e prolongá-lo, estendê-lo em uma tentativa de recriar a nossa relação com o tempo. Nossa mente e nossa visão não podem funcionar em câmera lenta, no entanto, podemos congelar um instante e de forma relativa obter resultado semelhante.

É como olhar a vida através do microscópio e perceber que naquele objeto aparentemente inerte, existe vida e elementos que até então inexistentes, ao menos na percepção do expectador.

Você pode buscar essa observação minuciosa, aumentando a capacidade de perceber novas variações tonais da vida. Essa experimentação pode surgir de inúmeras formas e espectros diferentes, através de culturas, teorias e crenças distintas. O Xamã, o Satori Zen Budista, o estudo da psique proposto por Freud ou na ciência, com seu fascínio pelo desconhecido.

É exatamente nesta busca, mas principalmente na aceitação da própria ignorância que inicia o embrião da necessidade do conhecimento, da compreensão. O conhecimento que pode ser representado por uma ilha, margeada pelo oceano do misterioso, do oculto, daquilo que aparentemente não existe. Na medida que a ilha do conhecimento cresce, o oceano não diminuirá, aumentará sim, a margem com o desconhecido, os questionamentos, as dúvidas, mas ao mesmo tempo a compreensão e a aceitação catártica e liberdadora da impossibilidade do conhecimento pleno, do universo ou de nós. Isso é o que nos torna mais humanos e menos deuses. Nossa visão do mundo e de nós como humanos, será, a princípio, eternamente e infinitamente incompleta.

Aplicada a teoria freudiana, a aceitação e compreensão da impossibilidade de nos aproximar completamente da plenitude de satisfação do superego, permite ao ego controlar nossa ID, sem que para esta atenuação de nossos picos de pulsões, seja necessário sua anulação. Modificando o princípio de formas contrárias para a anulação e controle dos desejo e impulsos e aperfeiçoando o controle da intensidade de sua aplicação. Controlar nossas forças ao invés de anula-las, elimina a possibilidade do ego, ainda que inconscientemente, seja detentor de poder. Deixa de ser um juiz de causa própria, sabotando nossa percepção a todo momento e passando a ser apenas um agente regulador.

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *